O Solitário
No solitário, a reclusão, ainda que absoluta e até ao fim da
vida, tem muitas vezes por princípio um amor desregrado da multidão e tanto
mais forte do que qualquer outro sentimento, que ele, não podendo obter, quando
sai, a admiração da porteira, dos transeuntes, do cocheiro ali estacionado,
prefere jamais ser visto e renunciar por isso a toda e qualquer actividade que
o obrigue a sair para a rua.
Arrependimento
Talvez possamos um dia nos arrepender do que fizemos...
Mas o arrependimento é sinal de que não tivemos medo de
tentar...
E daí se as coisas não deram certo como deveriam...
E daí se não era bem o que queríamos?
E nossa vida segue... para tentarmos e errarmos muitas
vezes...
Isso é viver e aprender.
Você espera de mim uma atitude que te convença algo que eu
não tenho como dúvida.
Se você fecha os olhos para não ver, não me culpe por
isso...
Compartilhar a minha vida e minha verdade está ao seu
alcance, basta que para isso você queira, mas não arranje artifícios para
justificar seus medos e dúvidas, pois isso só afastará nossa amizade, mas
deixará um vazio que nunca mais conseguiremos preencher.
Wandréia Carneiro
É PRECISO SABER DESLIGAR
Esqueça o trânsito caótico, a urucubaca política, o tal
balancete no final do ano. Deixe de lado a cobrança interna, a dívida externa,
a tão eterna dúvida. Viver é assim. Não há como negar. Para ficar ligado é
preciso saber desligar. Fácil? Nem tanto. Descobrir qual é o seu tempo é tarefa
nobre: exige um grande conhecimento sobre si mesmo. Portanto, esqueça o
relógio. Seu tempo está dentro de você. Chega de viver com a ansiedade no colo
e o celular na mão. Não deixe a agenda ocupar ? sem querer - o lugar do
coração. Respeite sua hora. Desacelere. TURN OFF. Mais do que correr, é preciso
saber parar. Não adianta viver no piloto-automático e deixar de sorrir. Nem
tirar folga e levar uma enorme culpa dentro da mala. O mundo lá fora exige
produtividade e imediatismo. Aqui dentro, corpo e alma pedem menos, muito
menos. Como fazer, então, para conciliar tempos tão diferentes? A resposta não
está em livros. Mas dentro de cada um. Quer tentar? Respire fundo. Desencane.
Perca seu tempo com você!É uma responsabilidade enorme desconectar-se, eu sei.
Mas vida ao vivo é pra quem tem coragem. Coragem de arriscar. Cuidado em saber
a hora certa de parar. Difícil? Pode ser. É um exercício diário que exige
confiança e um amor incondicional por tudo o que somos e acreditamos. Uma
aceitação suave dos próprios defeitos, um rir de si mesmo, um desaprender contínuo,
um aprender sem fim sobre o que queremos da vida. Não importa se tudo parecer
errado e o mundo virar a cara para você. Esqueça. Se esqueça. Hora de se
perdoar. RENASÇA. Eu sei pouca coisa da vida, mas uma frase eu sigo à risca: é
preciso respeitar o próprio tempo. E eu respeito! Acredito no que diz o
silêncio na hora em que a mente cala. E meu silêncio - que não é mudo e também
escreve - dita com voz desafiante: confie em si mesma. Quebre a rigidez. Ouse.
Brinque. Viva com mais leveza. E - por favor - desligue-se. Só assim você vai
transformar vida em letra e letra em vida. E ter coragem e fôlego pra ser VOCÊ,
no momento em que o mundo te atropelar sem licença e disser: CHEGOU A HORA!
Fernanda Mello
A Ultima Crônica
A caminho de casa, entro
num botequim da Gávea
para tomar um café junto
ao balcão. Na
realidade
estou adiando o
momento de escrever. A perspectiva me
assusta. Gostaria de
estar inspirado, de
coroar com êxito mais
um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu
pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano,
fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao
circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num
flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente
doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais
nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se
repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou
poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora
de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se,
numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura
da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela
presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no
vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas
curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos
que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da
sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que
discretamente
retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás
na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se
a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do
garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para
atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da
naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês.
O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho
-- um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular.
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de
Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a
comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto
ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante,
retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera.
A filha aguarda também, atenta como um animalzinho.
Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta
caprichosamente na
fatia do bolo.
E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e
acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no
mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater
palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam,
discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe
recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o
bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para
ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo
que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se
convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a
observa-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila,
ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num
sorriso.
Assim eu quereria minha última cronica: que fosse pura como
esse sorriso.
Luís Fernando Veríssimo
O melhor amigo
A mãe estava na sala, costurando. O menino abriu a porta da
rua, meio
ressabiado, arriscou um passo para dentro e mediu
cautelosamente a distância. Como a mãe não se voltasse
Para vê-lo, deu uma corridinha em direção de seu quarto.
– Meu filho? – gritou ela.
– O que é – respondeu, com o ar mais natural que lhe foi
possível.
– Que é que você está carregando aí?
Como podia ter visto alguma coisa, se nem levantara a
cabeça? Sentindo-se perdido,tentou ainda ganhar tempo.
– Eu? Nada…
– Está sim. Você entrou carregando uma coisa.
Pronto: estava descoberto. Não adiantava negar – o jeito era
procurar comovê-la.Veio caminhando desconsolado até a sala, mostrou à mãe o que
estava carregando:
– Olha aí, mamãe: é um filhote…
Seus olhos súplices aguardavam a decisão.
– Um filhote? Onde é que você arranjou isso?
– Achei na rua. Tão bonitinho, não é, mamãe?
Sabia que não adiantava: ela já chamava o filhote de isso.
Insistiu ainda:
– Deve estar com fome, olha só a carinha que ele faz.
– Trate de levar embora esse cachorro agora mesmo!
– Ah, mamãe… – já compondo uma cara de choro.
– Tem dez minutos para botar esse bicho na rua. Já disse que
não quero animais aqui em casa. Tanta coisa para cuidar, Deus me livre de ainda
inventar uma amolação dessas.
O menino tentou enxugar uma lágrima, não havia lágrima.
Voltou para o quarto, emburrado:
A gente também não tem nenhum direito nesta casa – pensava.
Um dia ainda faço um estrago louco. Meu único amigo, enxotado desta maneira!
– Que diabo também, nesta casa tudo é proibido! – gritou, lá
do quarto, e ficou
esperando a reação da mãe.
– Dez minutos – repetiu ela, com firmeza.
– Todo mundo tem cachorro, só eu que não tenho.
– Você não é todo mundo.
– Também, de hoje em diante eu não estudo mais, não vou mais
ao colégio, não
faço mais nada.
– Veremos – limitou-se a mãe, de novo distraída com a sua
costura.
– A senhora é ruim mesmo, não tem coração!
– Sua alma, sua palma.
Conhecia bem a mãe, sabia que não haveria apelo: tinha dez
minutos para brincar com seu novo amigo, e depois… ao fim de dez minutos, a voz
da mãe, inexorável:
– Vamos, chega! Leva esse cachorro embora.
– Ah, mamãe, deixa! – choramingou ainda: – Meu melhor amigo,
não tenho mais
ninguém nesta vida.
– E eu? Que bobagem é essa, você não tem sua mãe?
– Mãe e cachorro não é a mesma coisa.
– Deixa de conversa: obedece sua mãe.
Ele saiu, e seus olhos prometiam vingança. A mãe chegou a se
preocupar: meninos nessa idade, uma injustiça praticada e eles perdem a cabeça,
um recalque, complexos, essa coisa
– Pronto, mamãe!
E exibia-lhe uma nota de vinte e uma de dez: havia vendido
seu melhor amigo por trinta dinheiros.
– Eu devia ter pedido cinqüenta, tenho certeza que ele dava
murmurou, pensativo.
Fernando Sabino
Diálogo pós-morte
- Alô ?
- Sim.
- Maria ?
- É ela mesma, quem fala ?
- É o José...
- Ah, sim, tudo bem ? Que que aconteceu ? Tá com a voz
estranha...
- Eu estou bem sim, mas...não sei como te falar isso...
- Ora, fale logo! Está me deixando preocupada !
- O Joaquim...teu irmão...faleceu essa madrugada...
- Ah meu Deus...
- Ele morreu dormindo, não sentiu nada. Não se preocupe
- ...
- De manhã quando acordamos, não vimos ele lendo o jornal.
Estranhamos e fomos ao quarto ver o que havia acontecido. Ele estava deitado,
meio encolhido. Parecia mais calmo que nunca.
- Meu Deus...Não nos falávamos há anos ! Vocês já sabem como
ou porquê aconteceu ?
- Disseram que o coração parou. Só isso.
- Meu Deus...
- Ele viveu bem. Não passou sequer uma semana doente. Não
sofreu. Morreu dormindo. Eu mataria para morrer dormindo e sem sofrer como
ele...
- Sim, ao menos isso...morreu dum jeito bom, se é que isso
existe.
- O velório será naquele cemitério que o vô de vocês tá
enterrado. Nunca lembro o nome daquele lugar.
- Ah, sei onde é.
- Vai ser amanhã às nove da noite.
- Às nove da noite ?
- Sim...
- Não tem como ser mais cedo ?
- Não, aparentemente muita gente morreu e os horários estão
reservados.
- Até quando você morre tem que ficar na fila ! Esse
mundo...
- É...
- Mas olhe, aquela lanchonete de lá fica aberta até essas
horas ?
- Acho que sim.
- Que bom, não agüento essas coisas sem tomar um cafézinho.
Sabe como é...
- Sei sim. Então você vai ?
- Acho que sim, tenho que ver se arranjo alguém pra gravar a
novela para mim, senão não sei como farei...
- Ah, entendo...
- Até amanhã, filho. Você serviu meu irmão muito bem todos
esses anos. Deixou de ser caseiro e virou um irmão. Obrigado.
- Magina, não fiz mais que minha obrigação. Até amanhã
(Desligam os telefones)
- Maldita velha hipócrita...
Da arte de nascer e viver
Você está instalado confortavelmente no ventre da mãe, que
lhe provém de tudo, no morno entorno do útero, e ainda assim, de vez em quando
lhe dá uns coices.
Você começou de um ovo, com a união do espermatozóide com o
óvulo. A princípio, era uma coisa insignificante, e chegou a ser quase um
peixe, com guelras. Foi evoluindo para a forma humana, enquanto a barriga da
mãe também estufava cada vez mais.
Até que nove meses depois (ou menos, para alguns
apressadinhos), começaram em torno de você uns empurrões para botá-lo para
fora, quando não sabia ainda que havia um fora, mas só um dentro. Os empurrões
tornaram-se insuportáveis, até que você botou a cabeça para fora, e alguém o
agarrou pelo pescoço e pelos ombros e o arrancou do lugar onde você estava
antes tão bem.
Este parteiro, ou parteira, ainda por cima, segurando-o
pelos pés, dá-lhe umas palmadas na bunda, para que você chore e respire. Foi a
primeira agressão que você sofreu, das muitas que receberá ainda durante o
resto da vida. Cortaram-lhe então o cordão umbilical e o amarraram, para que
você se desligasse de sua mãe, que estava inundada de suor e gemia. Limpado,
foi embrulhado e posto nos braços da mãe, que logo lhe ofereceria os seios
túrgidos, para que você mamasse.
Mais alguns dias, e você já mama com furor, o leite
escorrendo da boca, e ainda dá umas cabeçadas naqueles seios, para que saia
mais leite. Depois, outra palmadinha nas costas, e você arrota. É um menino! Ou
é uma menina! gritaram as pessoas em torno. E você quase imediatamente recebe
um nome que não escolheu, e tão desastrosamente às vezes escolhido, que você o
carregará com vergonha pelos anos a fora.
Principia então suportar a burocracia em que estará
envolvido durante anos e anos: você vai ser registrado no Cartório das Pessoas
Naturais, e batizado numa igreja e numa religião de que nunca ouviu falar.
Ainda bem que, nos primeiros meses, você apenas mame, dorme,
chore e desperte. E começa então a enxergar. Vê vultos ao seu redor, e que logo
se delinearão, e você reconhece primeiramente a sua mãe, pelo seu cheiro, e
pelo calor de seu corpo.
Escuta barulhos, estouros e, para acalmá-lo, metem-lhe um
bico de borracha na boca, até, que já mais crescidinho, retiram-lhe o bico, e
você vai aprendendo confusamente que a vida é uma negação das coisas de que
gostava.
As pessoas então começam a ensiná-lo a falar a sua língua,
as palavras. Você aprende o alemão, o francês, o italiano, ou o português,
conforme o lugar em que nasceu. Aprende também palavrões, mas imediatamente o
repreendem ou lhe dão palmadas, se os repetir.
Você já se arrasta pelo chão e, logo mais, começará a ficar
de pé, como os outros. Enquanto isso, inábil, leva tombos.
Já enxerga, fora, as árvores, os passarinhos; vê a chuva que
cai; sente o calorão do Verão e o frio do Inverno. Vestem-no de roupa.
Familiariza-se com os bichos, com o cachorro, com o gato,
com as galinhas e com o galo. Também, já está comendo, às colheiradas,
papinhas, pois o leite dos seios da mãe vai sendo cortado. Recebe presentes,
como o ursinho de pelúcia. Recebe também beliscões inexplicáveis. É-lhe imposto
saber que existem regras a ser observadas, e que você não o fez. É proibido
mijar na cama.
Alguns anos a mais, você é levado à escola, para aprender
besteiras. Mais tarde ainda, ouvirá falar do Binômio de Newton, e da
hipotenusa. E terá de se defender dos
meninos mais crescidos, que o agridem.
Já então, sabe ler e escrever, e escreve nos muros.
De calças compridas, admoestam-no de que é preciso
trabalhar, para viver. E se você recalcitra, exclamam: “Vá trabalhar,
vagabundo!” E chegam a botá-lo para fora de casa.
Terá então sabido que existe o sexo. Que você tem um pênis
ou uma vagina. Que há o tal de orgasmo, e que é assim também que se fazem os
filhos.
Você encontrou uma sociedade já constituída, e um Estado. Está
sujeito a ele, à polícia, ao patrão. A ordem é obedecer.
Há também o pecado e outras restrições. Ameaçam-no com o
inferno. E há doenças inevitáveis, e o envelhecimento.
E você afinal morre, sem ter aprendido muito bem esta dura
arte de viver.
Annibal
Augusto Gama
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